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12 de jun. de 2010

GUEST POST: “VIM TIRAR ALGUMA COISA BOA DO QUE ME FEZ TÃO MAL”


Retirado do blog (com autorização) da Lola e da Autora do Guest Post, a Ana.

A Ana me enviou um email que começa assim: “Eu tenho dezoito anos e não sou um trote, nem uma brincadeira de mau gosto de alguém. Não escrevo super bem nem busco comoção das pessoas. Eu só tenho uma história triste que eu sei que acontece com muita gente que não tem coragem de contar, na verdade normalmente nem eu tenho. Mas ler as coisas que você escreve tão abertamente me deu vontade de dizer o que eu vivi, na esperança sincera de que isso possa ajudar alguém. De verdade, Lola, eu só peço que acredite em mim, porque muita gente não o fez quando eu precisei”.
Não vou nem comentar agora, talvez num outro post, apenas que acredito piamente no que a Ana conta. Eu ia cortar algumas frases, como aquelas em que Ana se dirige a mim, mas decidi deixar exatamente como está, sem mudar uma vírgula (e ela diz que não escreve super bem!). Fiquem com seu relato:

Quando eu tinha treze anos, eu conheci um cara. Ele era bonito, charmoso, elegante, sabia conversar, e tinha 21 anos. Eu era boba, ingênua, apaixonada, e logo comecei a namorar com ele ― o que teria sido um namorinho idiota que qualquer garota de treze anos tem e acha que é coisa séria, se ele não fosse quem é. Eu mal o conhecia, e hoje vejo quanta burrice eu cometi... Mas na época, eu não via isso. Meus pais sempre trabalharam o dia inteiro, e eu chegava da escola e ele vinha me buscar, a gente saía por aí... No começo, a gente só passeava de mãos dadas e eu me sentia a maior por ter um namorado. Depois ele começou a me levar em barzinhos, me incentivava a beber. Eu não gostava, mas bebia. Tudo pra agradar meu namorado, certo? E quando eu dizia que não queria fazer alguma coisa que ele queria, ele ficava meio bravo, mas eu acho que não percebia, ou não entendia muito bem. O caso é que eu tinha treze anos, e meninas de treze anos cansam das coisas muito facilmente, principalmente quando começam a achar que sair pra beber numa quarta à tarde com um cara que não conhecem muito bem é errado. E um dia, eu saí com umas amigas, e já estava meio cansada... acabei ficando com um menino. Fiquei morrendo de remorso. Quando eu lembro hoje, é até engraçado o quanto eu me remoí de remorso. Resolvi contar pra ele. Afinal, ele era meu namorado lindo e compreensivo, e ia entender, e a gente terminaria mas pelo menos seríamos amigos, quem sabe? Fiz a besteira de contar. Foi o primeiro dia que ele me bateu, Lola. Foi um tapa na cara no meio da rua, e as pessoas podem achar que foi só um tapa na cara, nada demais. Mas não deixo ninguém encostar na minha cara até hoje, nem de brincadeira, por causa disso. Eu lembro que caí no chão do lado de um poste e uma senhora veio me ajudar a levantar, olhando feio pra ele. E eu odiei essa senhora com todas as minhas forças e chorei de vergonha. Queria que ela sumisse e não me visse nunca mais. Não queria que ninguém me visse. Eu mandei ela embora. Não me lembro muito bem, mas eu acho que ela me olhou com pena. No dia, me parecia nojo.
Não sei bem porquê, não entendo até hoje minhas reações quanto a esse assunto, mas aquele tapa mudou minha cabeça. O jeito que ele me bateu enfiou na minha cabeça que ele tinha total domínio sobre mim e que eu seria a pior pessoa do mundo se não o obedecesse. Por isso, no dia seguinte, ele apareceu pra me buscar e eu saí com ele como se nada tivesse acontecido. Mas tinha acontecido, e ele não me deixou esquecer. A gente foi pra um bar e ― me desculpa, mas não tem outra forma de dizer isso ― ele colocava minha mão sobre o órgão dele o tempo inteiro por debaixo da mesa, e segurava ela lá, e eu me sentia horrorizada mas não fazia nada. E quando a gente saiu de lá, ele me levou pra um beco e me socou na barriga porque "eu estava paquerando o garçom".
Tá, não vou te contar sobre cada dia, Lola, apesar de que me lembro de todos eles. O caso é que eu comecei a beber de verdade e a fumar todo tipo de coisa, com treze anos, porque tinha dia que eu não conseguia levantar da cama de tanta resignação. Acho que o pior era isso, a repressão; eu achava que não havia outra saída, eu só podia me conformar, era a minha sina. Eu comecei a mentir pros meus pais ― um hábito que eu nunca tive ― e a comprar maquiagem pra esconder os hematomas. Eu disse até que fui atropelada uma vez, pra minha mãe, pra explicar porque eu não tava conseguindo andar direito. Eu desejava que ele morresse e me culpava por isso, e cheguei a achar que merecia apanhar por desejar uma coisa tão horrenda. Eu aprendi a apanhar em silêncio porque ele se empolgava se eu começava a chorar... Me acostumei a vomitar todo dia quando chegava em casa. Não sei porquê, mas era uma reação automática. Eu vomitava e isso fazia com que fosse mais fácil fingir que estava tudo bem. Meus pais me enfiaram numa psicóloga ― eu estava emagrecendo, e me isolando, e indo mal na escola, tudo que nunca tinha acontecido ― e eu mentia pra ela também. Eu não tinha ninguém, Lola, porque eu não quis ter. Na verdade, eu acreditava sinceramente que era pra ser assim. Ele me fez acreditar nisso. Ele me tratava como lixo, cuspia em mim, pisava no meu rosto. É incrível, eu vejo hoje como isso mudou a minha vida.
Isso não durou muito tempo, por mais que pareça uma eternidade. Quatro meses se passaram nessa mesma ladainha. Até que um dia ele me deu um chute na bexiga tão forte que ― você não sabe como é difícil dizer isso ― eu urinei em mim mesma. E ele riu. Ele nunca tinha rido de mim, e por mais que eu pudesse ver que ele gostava de me bater, isso nunca tinha ficado tão evidente. Não sei porque especificamente isso me fez cair a ficha ― o caso é que eu percebi, ainda que por um momento, que ele que era o bosta da história, ele que era um lixo. E no dia seguinte ele passou na minha casa e eu não desci. Eu fiquei olhando do meu apartamento enquanto ele sentava na praça que fica na frente da minha casa e cruzava os braços com uma cara de que ia me bater muito por não ter descido, no dia seguinte. Mas no dia seguinte eu também não desci. E no outro também não. Eu estava impressionada por saber que era possível não obedecer a ele, Lola, porque essa tinha se tornado a minha realidade. Eu estava abismada comigo mesma. E o tempo passou, cada dia meu medo dele aumentava, mas minha coragem de me proteger aumentava também.
Queria que minha história acabasse aqui, mas ele não desistiu de mim por muito tempo. Eu acho que ele me seguia sempre que podia ― teve vezes que eu estava andando por algum lugar e ele simplesmente cruzava comigo na rua e me deixava aterrorizada, me dizia que eu estava sendo uma péssima namorada e me dava no mínimo um puxão de cabelo pra lembrar quem manda. E eu não me recuperei totalmente, também. Eu continuei bebendo e fumando, e eu tinha crises de pânico em que parecia que ele ia entrar pela porta a qualquer momento, em que eu passava a noite inteira vomitando como se ele tivesse acabado de me dar um soco. Com o tempo, ele aparecia cada vez menos, mas eu continuava na mesma. Não conseguia ― e, pra falar a verdade, até hoje não consigo ― superar e esquecer e me convencer de que ele não podia mais me machucar. Eu estou resumindo a história, Lola, porque ela dura por mais cinco anos ― até hoje. Eu namorei mais algumas vezes, e todos os namoros acabaram pelo mesmo motivo. Passei esses últimos cinco anos oscilando entre o bem estar e o fundo do poço. O bem estar era quando eu acordava e dizia que ia parar com todos os meus vícios e ia superar tudo e tudo ia dar certo. O fundo do poço vinha quando eu não conseguia e acabava na mesma... Eu acho que não conseguia pensar claramente sobre isso ― guardei tudo num canto da minha cabeça que ignorava na maior parte do tempo ― porque o medo dele aparecer e me machucar não sumia nunca. Eu abria a janela do meu quarto todo dia com medo de ele estar ali, porque tinha vezes ― por mais que demorasse meses às vezes ― que ele estava mesmo lá. Tentei contar pra alguns amigos, uns acreditaram, outros acharam que eu estava inventando histórias. Alguns queriam que eu chamasse a polícia. Isso nunca me pareceu uma opção.
Bom, hoje eu tenho dezoito anos e moro sozinha. Mudei de cidade, larguei dos meus pais. Sinto uma falta imensa deles que me deixa na cama por horas seguidas, às vezes. Mas eu quase não volto, quase não vou visitá-los... porque deixar a minha cidade significou deixar o medo, e a ausência dele me dá um alívio tão imenso que nunca vou conseguir explicar pra ninguém... Estou reconstruindo a minha vida, e até agora tem dado certo. Parei de vomitar esse ano, parei de ter crises. Agora, eu consigo acessar as lembranças, por mais que sejam horríveis, e lidar com elas. Não fujo mais, e isso tem me ajudado, ainda que muito devagar. Há um ano atrás, eu nunca teria sido capaz de contar essa história, ainda que resumida desse jeito, Lola. Mas esses dias eu percebi como tudo teria sido diferente se eu tivesse simplesmente conversado com os meus pais. Meus pais são maravilhosos. Eu não queria machucá-los, porque só de imaginar a dor da minha mãe em descobrir o que eu sofri já me dá arrepios. Mas hoje eu sei que a distância que eu imponho entre nós causa uma dor constante, que supera a primeira. Tudo teria sido melhor se eu tivesse falado com eles, eu tenho certeza.
É, me desculpa ter escrito tudo isso, eu tentei resumir bastante, omiti tudo que eu podia.É que meu recado só faz sentido se eu conseguir mostrar pras pessoas como uma coisa dessas influencia a vida de alguém em todos os sentidos ― família, saúde, vida social, futuro. Não consegui me livrar de muitos vícios ainda, mas estou evoluindo como nunca evoluí. Eu acho que estou no caminho certo ― não vim aqui pedir ajuda, porque talvez só eu possa me ajudar mesmo, do jeito que eu me tornei introspectiva nesses cinco anos. Eu vim aqui tentar ajudar e tirar alguma coisa boa do que me fez tão mal. Vim aqui dizer a todas as mulheres que têm qualquer tipo de homem assim na vida, que não tenham medo de dizer, que não tenham vergonha, que saiam gritando se for preciso, que façam qualquer coisa pra que fiquem seguras. Que pensem no futuro, porque o futuro que eu tive não é o que nenhuma delas merece. Por favor, que vão à polícia. Que se protejam, se salvem, se cuidem; conservem sua sanidade. Porque a partir do momento em que se perde a autonomia da própria mente, se perde tudo. É só isso.
Obrigada Lola, pelo que quer que você for fazer com isso. Eu acho que, de todos os blogs que eu li procurando alguém pra mandar isso, você foi o único que me passou a idéia que eu queria ― que você vai fazer alguma coisa de útil com essa informação, e que vai fazer eu me sentir mais tranquila, e que vai ser mais fácil seguir com a minha vida. Obrigada.

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